22 abril, 2007

iSSO É NAZISMO!

Eugenia, pessoas com deficiência e Geologia – algo em comum?No dia 1º de abril passado, os leitores do site “Globo Online” (http://oglobo.globo.com) foram surpreendidos pela notícia “Vereador apresenta projeto para beneficiar família saudável que tenha filho sadio” (http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/04/01/295175673.asp), escrita por Gabriela Moreira, comentando o Projeto de Lei nº 1044/2007, que “estabelece estímulos e proteção à boa geração e constituição de famílias sadias”, datado de 6 de março de 2007, de autoria do vereador Wilson Leite Passos, do Rio de Janeiro, filiado ao partido Democratas (ex-PFL).
A jornalista Gabriela Moreira sintetiza assim o referido Projeto: “Pais saudáveis de filhos também sadios terão privilégios fiscais e educacionais em relação a famílias com algum doente incurável ou portador de deficiência física ou mental. (...). A idéia, segundo o vereador, é garantir a boa saúde das futuras gerações. Para isso, o casal que for aprovado no exame pré-nupcial - e, no caso de seus filhos, no teste pré-natal - teria gratuidade em todos os níveis de ensino, na aquisição de material didático e também preferência na matrícula”.
O Projeto visa reeditar e ampliar o Serviço Municipal de Eugenia, criado pelo mesmo vereador em 1956, mas extinto 19 anos depois. Polêmico, o Projeto encontrou forte oposição, inclusivo no próprio Partido.
O vereador se defende:
“Minha intenção é criar formas de estimular o desenvolvimento de uma sociedade saudável e equilibrada. Se alguma doença for detectada no pré-nupcial, o casal terá de se tratar. Mas, se o problema não for curável e eles quiserem ter filhos, precisarão arcar com as conseqüências” – disse Passos. “Pessoas de má fé querem deturpar a idéia. Minha intenção é beneficiar a sociedade”.
Da Justificativa que acompanha a Proposta (http://oglobo.globo.com/rio/mat/2007/04/01/295175547.asp), destaco alguns trechos, representativos do espírito da Proposta de Lei:
“Sociedades de enfermos físicos, morais ou mentais, além de, por natureza, serem infelizes e viverem em constantes tragédias decorrentes da ação negativa e danosa desses componentes infelizes, não acompanham o progresso dos povos mais sadios, melhor dotados, e em conseqüência, cada vez mais deles se tornam dependentes. (...)
Assim, Nações de povos sadios, destruídas pelas guerras ou cataclismos, ressurgem com todo vigor observando, à distância, povos e Nações que, na aparente bem-aventurança da Paz, vêem crescer suas tragédias e infelicidades, à proporção que cresce o número de seus componentes, mal dotados, improdutivos, enfermos de toda ordem, incapazes de – na luta pelo progresso e o aperfeiçoamento – contribuírem eficazmente. Esses, ao contrário, dessangram, quando não destroem, toda a resultante da força criadora, produtiva, das parcelas sadias da Sociedade. Sob muitos aspectos – assim – não raro a Sociedade regride. (...)
Perante essa realidade, é dever de todo cidadão consciente, particularmente do homem público, dentro de suas possibilidades, lutar pelo aperfeiçoamento individual e coletivo – para o que a primeira ação concreta é, além da busca do próprio aprimoramento, assegurar melhores gerações a sua Nação.
É o que fazemos com este Projeto e outros anteriormente apresentados, na esperança de que os demais legisladores – com igual responsabilidade quanto ao futuro de nosso País – hão de compreender que, sem uma política superior e constante destinada a assegurar melhores gerações, o Brasil será um vasto hospital, hospício e xadrez, crescendo em desequilíbrios e infelicidades individuais e coletivas – cada vez mais distante e dependente de povos melhor dotados e, por isso mesmo, mais desenvolvidos e equilibrados, em razão do equilíbrio de seus componentes“.
A leitura da Justificativa remete, imediata e diretamente, ao conceito de eugenia, levado às últimas conseqüências pela Alemanha nazista. A conexão com essa terrível fase da história desperta revolta, indignação, asco, vergonha.
Mas vale a pena ultrapassar essas reações iniciais, para aprofundar nossa reflexão. Afinal, o vereador não é o primeiro a querer eliminar pessoas com alguma característica “diferente”, diferença essa que é considerada como negativa e até mesmo nociva – e, de preferência, deveria ser eliminada da face da Terra.
Por que as pessoas com deficiência despertam sentimentos assim?
As razões certamente são muitas. Talvez não encontremos propriamente “respostas”, mas simplesmente hipóteses.
Independentemente da classificação que queiramos dar (respostas, hipóteses, opiniões, palpites), gostaria de trazer o conceito de “testemunho”, utilizado pela Geologia e pela Biologia (entre outros campos do conhecimento), que permite jogar luz nessa questão.
O conceito de testemunho permite trabalhar com objetos como representantes de idéias, de conceitos ou de processos. Assim, a produção de um determinado objeto ou a escolha de uma peça específica (que comunique a idéia, o conceito ou ilustre o processo) está necessariamente de acordo com o sistema de representações de quem produz ou decide.
Testemunhos podem ser formações geológicas (remanescentes de outras eras), fósseis de animais ou mesmo determinados tipos de vegetação, que permitem medir a poluição do ar. Eles permitem ler, como em um livro, a história do planeta e as leis que o regem. A sua destruição implica, portanto, perdas irreparáveis de informação. Assim, uma vez identificada a carga valorativa destes testemunhos, tornam-se patrimônio da humanidade e, como tal, devem ser preservados e respeitados. Tornam-se patrimônios.
Aqui, estamos falando de seres humanos, que têm algumas características diferentes do que é considerado “normal para a espécie humana”. Assim, o conceito de “patrimônio” não se aplica, mas o de “testemunho” sim.
Vamos tomar como exemplo uma escola da rede pública, de qualquer lugar do Brasil. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2005, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), evidenciam a total inadequação da estrutura física das escolas: falta de energia elétrica, de biblioteca, de quadra de esporte e até de sala de aula para acomodar alunos de séries diferentes são alguns dos problemas constatados. Portanto a escola não tem um padrão mínimo de qualidade que garanta condições de aprendizagem.
Ora, ao receber um aluno com algum tipo de deficiência, essa inadequação fica gritante, exposta da forma mais crua, por assim dizer. A situação com a qual todos conviviam, pois não viam outra alternativa, fica insustentável – simplesmente com a presença física da criança (ou jovem) com deficiência, seja ela qual for. Ela se torna, assim, um “testemunho”.
Em uma empresa acontece o mesmo. Imaginem o restaurante de uma multinacional que passou por uma fase de expansão de negócios. O local tornou-se apertado; circular com as bandejas exige a perícia de um equilibrista. A descontração e o convívio, característicos do almoço, diminuem de qualidade. Basta contratar um cadeirante para que a direção da empresa, que até então não tomara nenhuma medida para garantir a qualidade de vida de seus funcionários, suspire e lamente que “vai ter que ampliar o espaço”. Novamente, o “testemunho” evidencia o que ninguém queria ver, a sujeira sob o tapete.
É interessante notar, nos exemplos acima, que as condições não estavam adequadas para ninguém, independentemente da existência da deficiência. Mas havia uma inércia, uma atitude de “deixa estar para ver como fica”. A chegada de uma pessoa com deficiência impossibilita essa acomodação.
Aí está uma das raízes do preconceito, da discriminação e até mesmo da exclusão sumária, como aconteceu na Alemanha nazista. As pessoas com deficiência são testemunhos de nossa fragilidade humana, da inadequação de nossas cidades, da inoperância de nossa legislação, de nossa acomodação frente ao que deve ser mudado.Isso incomoda.
Por que não inverter a situação e encarar a inclusão (e todos os desafios que ela nos propõe) como uma oportunidade de ouro para nos remeter à nossa verdadeira dimensão humana e para nos situar em parceria com a humanidade, respeitando e valorizando sua diversidade?
Desta forma, a presença da pessoa com deficiência passaria a ser um testemunho de acessibilidade: ao encontrá-la em um teatro, uma loja, uma empresa, saberíamos que tem acessibilidade; sua presença na sala de aula indicaria um ensino de qualidade para todos; os sites que ela acessar seguem os critérios de acessibilidade digital e, portanto, têm condições universais de usabilidade.
É chegado o momento de fortalecer a eqüidade, a solidariedade, a justiça, para construir a Sociedade para Todos, onde os “testemunhos” sejam companheiros de estrada e co-partícipes.*
Marta Gil é vice-presidente do Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas e consultora na área de Deficiências.A Rets não se responsabiliza pelos conceitos e opiniões emitidos nos artigos assinados.

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